Estava eu no ônibus, absorto em meus pensamentos, quando me toquei de que eu havia deixado de ser uma pessoa observadora. Pois é verdade: de uns tempos para cá, as coisas acontecem e muitas vezes eu não as percebo. Entretanto, na hora em que tive esse estalo, a consequência foi natural: "vou passar a observar mais".
Na mesma hora, entrou no ônibus uma notável senhora
de uns 30 anos, com algumas sacolas de compra e os dois reais da tarifa à mão. Esperou a fila para a roleta, até que sua hora chegou e, após entregar as duas moedas à cobradora, iniciou sua via crucis de meio metro.
Sua largura era sua cruz. O espaço entre a roleta e o vidro, seu calvário. A roleta e o vidro, seus algozes. Lentamente, a mulher levantou suas sacolas para cima da roleta, passou-as para o outro lado, deixou o braço abaixar. Com um pequeno passo a frente, enfiava toda sua saúde naquele espaço mínimo pelo qual precisava passar.
Era necessário que ela se comprimisse. Tratou de encolher a barriga, mas o traseiro era preponderante e não havia jeito de passar se não amassando-o contra o vidro. A medida em que ela passava, só se via aquela abundância hemisférica, literalmente falando, planificando-se contra a superfície polida do vidro, e distorcendo-se diante de meus olhos.
Para não ficar entalada e assim obter um constrangimento inimaginável dentro do coletivo, a moça iniciou um movimento giratório alternado, facilitado por sua roupa de tecido razoavelmente deslizante. Após algumas rodadinhas que deslocaram a roleta, foi possível que a senhora por ela passasse, triunfante, e alcançasse o não tão espaçoso corredor do ônibus, numa cena que facilmente comportaria como trilha sonora
Chariots of Fire, do grande Vangelis.
Esse caso ilustra uma das muitas dificuldades que a população de grande inércia - ou com ela mal distribuída - enfrenta diariamente. São passagens estreitas, poltronas de cinema subdimensionadas, olhares asquerosos, roupas que dificilmente caem bem, cadeiras de plástico que se espatifam,...
Sem falar na constante pressão que os gordinhos sofrem por conta do bombardeio midiático em cima do corpo escultural, magro, perfeito, simbolizado por beldades de uma finura que chega a ser patológica.
O contexto não é favorável aos gordinhos. Paradoxalmente, o tamanho notável lhes é aviltante, torna-os menores. Marginalizados, alguns muitas vezes recorrem a soluções aparentemente milagrosas, que inundam a TV com promessas incríveis de rápido emagrecimento. Outros preferem ir ao analista. Outros simplesmente fecham a boca. Outros isolam-se na internet sob a forma de avatares.
Em escala minoritária, estão os menos encucados, que ignoram solenemente o fato de serem gordinhos, e conseguem levar uma vida comum. Há até quem saiba aproveitar de seu tamanho para fazer-se uma figura única, autêntica, destacada dos demais.
Infelizmente, porém, os que sabem lidar com os alguns (ou muitos) quilos a mais são poucos. A maioria ainda se incomoda bastante com isso. Assim, podem acabar por relegar a segundo plano aspectos do ser realmente importantes.
Aspectos do ser realmente importantes. Sim, são aqueles que quase sempre são invisíveis aos olhos. Aqueles que só o coração percebe. Aqueles que garantem uma amizade, um casamento, um carinho, um amor, uma vida, e não podem ser quantificados, muito menos por balanças mal-aferidas, pessimistas e repressoras.
(Ouvindo: Muse - Sing for Absolution)