GUIA DE LEITURA

Se você me perguntasse quais textos ler, eu diria para CLICAR AQUI e achar uns 20 e poucos que eu classifiquei como os melhores. Mas vão alguns de que eu particularmente gosto (e que fizeram algum sucesso):

Caritas et scientia
(as saudades da minha escola)
A-Ventura de Novembro
(o retrato de um coração partido)
Vigília
(os sonhos nos enganam...)
Sairei para a boate e encontrarei o amor da minha vida
(ou "elucubrações esperançosas")
(a afeição por desconhecidos)
A tentação de Mãe Valéria
(trago a pessoa amada em três dias)
A nostalgia do que não tive
(a nostalgia do que não tive)

domingo, 29 de julho de 2012

A CAMAREIRA

Leio semanalmente a coluna do Luiz Felipe Pondé na Folha, às segundas-feiras. Passei um tempo viajando e hoje fui ler a crônica "A idiota de Deus" (disponível aqui). Recomendo. Pondé falou de uma coisa que eu sinto de vez em quando e é bem forte. Queria compartilhar.

Sempre fico mexido com  generosidade, altivez, doçura, simpatia genuína (odeio polidez e cortesias contidas) e capricho, especialmente quando vêm de pessoas que estão tão próximas fisicamente (ora porque servindo um café, ora porque anônimos no transporte coletivo, etc), mas tão distantes em termos de conexão pessoal. É deslumbrante quando algo faz romper essa barreira. Fico mexido e perturbado: é a hora em que sinto ir por água abaixo todas as minhas abstrações sobre o mundo, minha intelectualidade política, minha auto-imagem, minhas representações sobre o que as pessoas são ou devem ser, meu indivíduo como centro do meu próprio universo, às vezes até vacilo em minhas posições quase-libertárias, como se aquele choque de humanidade me levasse a pensamentos de esquerda. Quase me vejo como alguém inconsistente e incoerente: sinto diferente do que penso que sentiria, e preciso repensar. Não dura muito tempo, mas é arrebatadora a dissonância cognitiva.

Uma figura que sempre me mexe, com renovável ineditismo, é a camareira de hotel. Quando viajo, costumo sair cedo do hotel e só voltar de noite para dormir, então percebo que as camas estão milagrosamente arrumadas, o quarto limpo, o banheiro alinhado: tudo com muito capricho. O fato de eu não olhar em um par de olhos faz parecer que a limpeza simplesmente aconteceu e pronto: o trabalho bem feito vira uma grande abstração absorvido pela coisa em si, ali, pronta, e eu mal me dou conta do que a antecedeu. É assim quase sempre. E com quase tudo: a comida gostosa, a lixeira limpa, a torneira brilhando, ...

Ano passado, estava viajando nos EUA e fiquei com febre pesada em um dia. Tive que ficar no hotel o dia inteiro, de molho. Em dado momento de meu descanso, a porta do quarto se abre: é a camareira, que toma um susto ao me ver lá dentro e pede desculpas desconcertada, como se houvesse pecado contra minha privacidade. Eu falo para ela entrar e não se incomodar com a minha presença enferma. Ela era tão sorridente e simpática que eu puxei uma conversa enquanto ela trocava a roupa de cama ao lado (sinto-me como se estivesse iniciando um conto erótico, mas não). Descobri que era filipina, que tinha um filho pequeno, que adorava Nova York, que a vida lá era muito melhor que em sua terra natal, que gostava de um tal programa de televisão sobre viagens e tudo o mais. Falei um pouco sobre mim, sobre o Brasil, e ela inclusive pôs a mão na minha testa para ver se eu ainda estava com febre. Suas mãos eram um pouco ásperas, como as da minha mãe, no que até me contagiei por um carinho maternal. Perguntou se eu queria algum remédio. Disse que não precisava, pois estava bem suprido de farmácia (como sempre). Acalentei-me com sua presença. 

Logo depois, ela foi embora, dando um tchau desconcertado, como se houvesse transgredido sua própria habitualidade ao ter uma conversa tenra e pessoal com um hóspede. O quarto estava um brinco. O mais legal foi sentir que a roupa de cama arrumada ficou com cara de gente: a camareira e seu cuidado ali estavam estampados. Se abraçasse o edredom naquele momento sentiria seu calor humano, como se a própria camareira me abraçasse. O quarto ficou terno, a arrumação ficou humanizada. Por pouco, não me senti em casa. Seu capricho fora personificado e a limpeza ali teria nome e sobrenome, se eu o houvesse perguntado. Até hoje me penitencio por não tê-lo feito.

(aliás, até acho engraçado que nunca sei o nome dessas pessoas aleatórias com quem de vez em quando tenho encontros instantâneos e reveladores... indago-me se acabo por despersonificá-los, em clara ingratidão diante da humanidade que elas me trazem.)