GUIA DE LEITURA

Se você me perguntasse quais textos ler, eu diria para CLICAR AQUI e achar uns 20 e poucos que eu classifiquei como os melhores. Mas vão alguns de que eu particularmente gosto (e que fizeram algum sucesso):

Caritas et scientia
(as saudades da minha escola)
A-Ventura de Novembro
(o retrato de um coração partido)
Vigília
(os sonhos nos enganam...)
Sairei para a boate e encontrarei o amor da minha vida
(ou "elucubrações esperançosas")
(a afeição por desconhecidos)
A tentação de Mãe Valéria
(trago a pessoa amada em três dias)
A nostalgia do que não tive
(a nostalgia do que não tive)

quinta-feira, 13 de março de 2008

AMBULÂNCIA

Toda vez em que uma ambulância passa é a vida de alguém que está quase indo para o beleléu.

Para você que está caminhando na rua e ouve aquela sirene ensurdecedora, é mais um "barulhinho" que te chama a atenção num lapso. A luz vermelha girando loucamente, o motorista vestido de branco dirigindo atento, com a coluna curvada para frente, aquela luz interior da parte traseira do veículo, que, por um vidro opaco, sinaliza somente que ali há vida à beira da morte.

A ambulância corre tanto, que vem tão rápida e se vai tão rápida que o beleléu é uma abstração para terceiros: não existe, não se faz sentir. O beleléu só é beleléu para quem ali está, entre o tudo e o nada, ou para quem acompanha quem ali está.

A ambulância é mais um elemento de uma paisagem catastrófica urbana. Tão banal. É a sirene que vira poluição sonora. É itinerante e intermitente. A certeza do "de vez em quando". É o motivo da curiosidade das crianças, que sempre querem entrar numa ambulância e ver o que tanto tem lá dentro.

A ambulância, em toda sua pressa e e prerrogativa legal de livre trânsito, pode servir para desafogar o tráfego. Pode atrair espertinhos que vão atrás dela aproveitando-se do espaço aberto pela urgência e pela solidariedade aos necessitados. Espertinhos para os quais a vida de alguém que está indo para o beleléu é só mais uma facilidade que o acaso lhes deu de presente, quase que advinda de alguma espécie de princípio de conservação da bonança.

Talvez o que separe a ambulância do carro da funerária, além do vermelho e do preto característicos, seja o fio de esperaça que uma tem e a outra não. A iminência não é a certeza. A ambulância é um flerte. O carro da funerária é um beijo. A pressa e a calma. A instabilidade e o retilíneo.

E se em algum momento a ambulância que voava aos brados de cor encarnada e pintada de múltiplos decibéis desliga sua sirene no meio de um percurso e diminui a velocidade? Um fechar de olhos, um último suspiro. Seria o momento mais poético das vias da cidade. A hora em que a ambulância sinaliza seu fracasso, sua insuficiência, o fim de sua esperança. A desistência. A hora em que todos os carros param, que todas as sirenes, buzinas e gritarias se desligam e há um mergulho no silêncio sereno de uma efemeríssima eternidade - a hora em que tudo pára para a contemplação -, o silêncio de respeito à hora em que a campainha do beleléu tocou e a porta foi aberta para alguém entrar.

Toda vez em que uma ambulância passa pode ser a hora de se refletir sobre alguma coisa que a cerca. Mas é difícil pensar em algo nessa hora porque ela é rápida e impessoal. Isso a torna abstrata. Isso reduz ao trivial a luta que ali dentro se trava. As ambulâncias deveriam trazer um letreiro externo eletrônico contendo os seguintes dizeres, ao lado de uma foto do indivíduo em atendimento num momento feliz de sua vida:
ESTAMOS TENTANDO SALVAR A VIDA DE FULANO DE TAL.

E se as pessoas parassem suas vidas quando vissem uma ambulância para começar a rezar, a mentalizar coisas positivas para a vítima?
As ambulâncias deixariam de ser mais umas ambulâncias dentre várias que escandalosamente se manifestam.
A vítima deixaria de ser mais uma vítima, mais uma estatística.
Os pedestres deixariam de ser só mais alguns andando na rua para formarem uma torcida.

A lógica do "é só mais um, então dane-se" e a lógica do "inevitável, então deixa para lá" deixariam de ser a tônica de como a vida vê a vida, da forma como o semelhante vê o semelhante.

A hora da ambulância seria o chamado recorrente, material, sonoro e colorido de que a vida deve celebrar a vida. Uma tomada de consciência. Um estalo. Uma forma que o Dr. Acaso, renomadíssimo publicitário, achou para divulgar, ainda que objetivando alguma percepção do inconsciente, o produto que ninguém precisa comprar, pois é o bem que todos já têm. Bem perecível, cuja data de validade não se conhece e que, cedo ou tarde, mal ou bem, encontra no beleléu seu pouso derradeiro. Seu repouso.

Um comentário:

Anônimo disse...

O texo está bom.

O argumento, não concordo em toda parte. Apesar de humano e comovente torcer para que cada um se salve, que os médicos operem milagres e que a esperança de algo bom se concretize sempre (tudo muito lúdico, por sinal.), as estatísticas e os números salvam (ou deveriam), na área de saúde, muito mais vidas que o mais talentoso médico.
O problema é que a maioria das pessoas é humana demais. Até quem tenta fazer nossas políticas de saúde.