Gostaria de trazer à reflexão o seguinte assunto: até que ponto pensar em fazer algo se compara a de fato fazê-lo?
Exemplificando: desejar trair é tão grave quanto trair? Desejar matar é tão grave quanto matar? Desejar ajudar é tão louvável quanto ajudar?
Devolvo as perguntas transformando em interrogação um discurso comum no contexto de aniversariantes que deparam-se com presentes mixos:
O que vale é a intenção?
Dar a mesma resposta a cada uma das inúmeras situações em que essa pergunta é cabível seria uma generalização incrivelmente tola, portanto, trarei alguns casos à discussão, a começar pelo primeiro exemplo.
I. O PRESENTE INDESEJADOPr-s (pre-scriptum): pergunto-me se com 5 anos, a criança já faria esse questionamento... será?
O aniversário de cinco anos traz consigo o deslumbramento de completar uma mão inteira na contagem das "primaveras", assim como a sensação de grandeza, imponência, afinal, são cinco anos! Festa de aniversário,
bolo, guaraná, muitos doces para você. E, claro, como não poderia faltar, presentes. Depois daquela farra toda de correr, pular, brincar, cantar, comer e receber os cumprimentos de todos, chega a hora de abrir os tão esperados presentes, tão sonhados desde o último aniversário. A ordem de abertura é sempre a mesma. Primeiramente, abrem-se os embrulhos grandes, que aparentam ter caixas dentro e que, quando sacudidos, fazem barulhinho de plástico batendo por dentro. Geralmente, esses embrulhos costumam ter brinquedos dos bons. Em seguida, é a vez dos embrulhos menores, mas que ainda aparentam ter caixas e fazem o famigerado barulhinho. Esses tem brinquedos do tipo cacareco, exceto se for Lego. Por último, vêm os embrulhos moles, macios, que geralmente contêm os presentes que nenhuma criança quer receber: roupas. A decepção é instantânea e arrasadora com esse tipo de presente, que geralmente, é dado por pessoas de certa idade, como tias-avós e avós.
Se a criança ainda tem sua sinceridade aflorada, é natural que ela se manifeste claramente sua decepção com o presente que ganhara. Nessa hora, pode vir um pai, uma mãe, ou um irmão mais velho consolar o pequeno decepcionado. Após um breve e ineficaz discurso sobre o valor das roupas, sua utilidade prática e a beleza do presente ganho, é possível que se chame o recurso de dizer que o que vale é a intenção, a fim de que a criança não fique chateada com aquela tia-avó que deu o presente
É razoável? Sim, afinal, a dileta senhora teve o carinho de comprar alguma lembrancinha e, provavelmente, jamais passou por sua cabeça o desejo de desapontar o pequeno. Na verdade, ela apenas foi infeliz em comprar a lembrança , talvez porque na sua época roupas eram presentes que crianças gostavam, evidenciando aí a diferença de gerações, ou porque escolher uma roupinha que fique
engraçadinha é mais fácil do que optar por um brinquedo dentre muitos numa loja infantil de grande variedade. Numa próxima vez, ela acerta!
II. DE BOAS INTENÇÕES, O INFERNO ESTÁ CHEIOCom lugar cativo no hall das frases feitas, essa sentença resume o comportamento de muitas pessoas que, por mais que desejem fazer boas ações, acabam desvirtuando-se da intenção original por várias razões. Há os preguiçosos, para os quais tudo só funciona da boca pra fora e que, quando se vêem diante de pôr em prática tudo o que preconizam, preferem ficar sentados na cadeira, só coordenando. Há também os covardes, que na hora H amarelam, inibidos por n outros motivos. Para esses, meu pesar: de que adianta ter uma boa intenção se ela não é honrada?
Não podemos nos esquecer, porém, dos desajeitados e azarados, que tentam, tentam mas não conseguem chegar aonde precisam e aí fracassam. Seria injusto não levar em conta a perseverança e a atitude da pessoa e, para esse caso, acho que é válido aceitar sua boa intenção e dar-lhe uma outra chance para o acerto.
III. PUNE-SE A TENTATIVA?Depende. Analisando pela lei, vemos que a tentativa não é punida quando o crime não se consuma por ineficácia absoluta do meio ou impropriedade do objeto, isto é, quando não há maneiras disponíveis no momento de se praticar o crime. É como tentar matar alguém a petelecos. É diferente, portanto, de alguém que atira em outro a fim de matar, mas o tiro pega na perna e a vítima sobrevive.
Considero que a mente criminosa não é ocasional ou aleatória. Às vezes, desejar matar alguém acontece em momentos de raiva, insatisfação e etc, mas controlamo-nos suficientemente para que isso passe sem maiores resquícios. No entanto, isso pode persistir a ponto de gerar agressividade, hostilidade e outros "ades" que perto de armas - brancas ou de fogo - criam um meio de alta eficácia e aí não será punida a tentativa, mas sim o crime consumado. É bom não esquecer que as ações práticas sempre começam em pensamentos.
Ando meio frustrado com a baixa participação de meus queridos leitores, que nas últimas mensagens não me presentearam com seus comentários. O que tem acontecido?
PS: A título de curiosidade, informo que esse texto foi elaborado ao longo de quatro meses. Intenção persistente a minha, não?
(Ouvindo: Deep Purple - Strange Kind Of Woman
Radiohead - Paranoid Android)