(E OUTRAS OBSERVAÇÕES)
Um passeio pelo Centro da capital fluminense é sem dúvidas algo bastante produtivo para quem quer observar pessoas. Não o fiz com essa intenção, mas, uma vez estando por lá para resolver outras coisas, prestei atenção em alguns detalhes que recheiam o coração financeiro da cidade.
O mercado informal foi, sem dúvida, a área que mais me saltou aos olhos. Fiquei exuberado com a capacidade das pessoas de, apesar de não possuírem um emprego, terem e honrarem um trabalho. Cada um procura ganhar sua sobrevivência como dá e da melhor maneira possível. Não obstante terem que trabalhar sob chuva e sol, sem direito a férias, décimo-terceiro ou folga remunerada, o enorme contingente de trabalhadores informais mantém a cabeça erguida e o sorriso no rosto, e não raramente dão show de vendas e simpatia.
O vendedor de tira-bolinhas-de-roupa. Esse é capaz de dar muita inveja a muitos
salesmen por aí. Sem nenhuma inibição, chama os pedestres de maneira carinhosa e, com muita lábia e sorrisos desdentados, consegue expôr a eles seu produto. Ressalta de maneira ímpar as vantagens do aparelho e ainda permite um test-drive. Sua garantia, dispensa termos, contratos ou assinaturas, sendo só de três palavras: "estou sempre aqui". Vende bem e, quando não vende, conquista a simpatia de quem passa, que dele faz uma boa imagem. O mesmo efeito de uma boa propaganda.
A moça que faz batata frita no meio da rua. Pode parecer ridículo, mas fiquei observando clinicamente o cuidado com que ela colocava as batatas na frigideira, mexia-as, tirava-as, colocava no saquinho, dava tapinhas no saquinho para caber mais, colocava mais batata, pegava um guardanapo e servia-a ao cliente de cara aberta, ainda oferecendo em tom muito solícito ketchup ou mostarda. Ainda que aquele não fosse o melhor ofício do mundo ou o que lhe permitisse melhores condições de vida, fazia-o com prazer. E só isso já valia.
O casal que vende bebidas. Tem uma barraquinha bem arranjada, com guarda-sol para caso de sol ou de chuva, uma "vitrine" com frascos vazios e muita disposição para encarar o número significativo de vendas. Está ali desde cedo até depois do entardecer, atendendo pedidos, botando a mão no isopor com as bebidas, dando o troco e agradecendo a preferência. Oferece os preços mais baixos das redondezas a fim de atrair clientes, mesmo sem conhecer formalmente a lei da oferta e da procura.
A vendedora de canetas de um real. Magra e baixinha, desfruta o auge de seus quase 40 anos ao sol escaldante da Av. Rio Branco trajando calça jeans, camisa jovem e mochila desportiva. Instala sobre um papelão em formato retangular uma bandeja de tamanho médio, sobre a qual coloca várias canetas dos mais variados tipos, tamanhos e cores. Todas por um real, tal qual anuncia a cartolina desenhada à mão e pregada dos lados da bandeja. Atende, em geral, o público feminino e ainda dá conselhos sobre qual caneta combina mais com a cor da carteira ou da bolsa. Concluída a venda, embolsa um real, mas abre um sorriso de ganhadora da mega-sena e dispara um "obrigada" verdadeiro e atencioso. De nada.
Maximizar a produtividade não é objetivo exclusivo de empresas formais. Chamou-me a atenção uma "empresa" de venda de DVDs copiados que se instala diariamente às 6 horas sob a marquise de um grande prédio. Estabeleceram ali algo como uma linha de montagem, contando com uma especialização da atividade de cada funcionário com organização de fazer jus às melhores proposições fordistas. Na verdade, ficou faltando a esteira.
A primeira funcionária é a responsável pela "vitrine". Expõe no chão os vários títulos de filmes e shows que disponibilizavam, atende diretamente aos clientes respondendo a eventuais perguntas e, após a escolha do freguês, direciona o mesmo a próxima funcionária. A segunda vendedora é a responsável por pegar, numa caixa imensa com inúmeros dvd´s, o título escolhido e o encarte correspondente. Coloca-o na caixinha e emite um papel com o valor a ser cobrado. Munido desse papel, o cliente dirige-se à próxima funcionária, que recebe o dinheiro, anota-o em um livro caixa e preenche o cartão de garantia, que dá um prazo de 15 dias para troca. A passagem pela quarta funcionária é facultativa, mas nunca ignorada, pois, afinal, é importante testar o disco comprado para não correr o risco de se decepcionar posteriormente, só que sem ter o PROCON para recorrer.
Pausa para observações. As quatro funcionárias andam muito bem vestidas, levemente maquiadas, são muito sorridentes e ainda falam português correto, sem apelações da informalidade, portando-se à imagem e semelhança das vendedoras das butiques de madame que movem o caríssimo Shopping Leblon. E tudo isso sem a presença de uma supervisora que só conhece o modo imperativo e não se cansa das sugestões enfáticas "sorria", "diga boa-tarde", "diga obrigado", "seja paciente" e etc.
São esses alguns poucos exemplos do trabalho que, embora muitas vezes perpasse por atos ilícitos e condenáveis, é levado a sério e com dedicação.
(Favor não comparar com traficantes de drogas ou criminosos de alta periculosidade. Não quero entrar no mérito da questão, mas as diferença são notáveis) Trabalho esse que muitas vezes não é valorizado como deve, apenas por estar a margem das estatísticas ou de olhares políticos. Trabalho esse que encaro como forma de superação - quase apelação para sobrevivência - de muitos que estão excluídos do acesso ao emprego, cercado de todas as garantias e merecidos benefícios que lhe cabem.
Ressalte-se aqui a quantidade de pessoas que estão bem empregadas, mas não fazem jus a isso. Trabalham sem vontade, sem prazer, atendem mal, não dão o melhor de si. Isso acontece especialmente no funcionalismo público, embora haja muitos servidores nessa área que trabalham por dois, por três ou pela equipe toda. Mais desalentador ainda é ouvir gente nova dizendo querer fazer concurso público porque ganha bem e não faz nada. Ora ora, para onde estamos caminhando?
Pois é, centro da cidade é isso. Gente que não tem emprego e trabalha, gente que tem emprego e trabalha e gente que tem emprego e não trabalha. Esqueci alguém? Ah, claro... gente que não tem emprego nem trabalha. Olhe-me aí, mas só por enquanto, tá?