O cabelo sorvetão e o excesso de maquiagem tudo revelavam sobre a idade daquela senhora que, com um bando de bolsas de lojas chiques, andava pela rua sobre um salto barulhento, capaz de ser ouvido mesmo com os ruídos da rua.
Andava de nariz erguido e tinha um olhar esnobe. Talvez fosse esposa de empresário ou alta aposentada do serviço público. Tinha cara de viúva, daquelas que descobrem a vida com a morte do marido.
Suas sacolas nada mentiam sobre suas possibilidades. Somente marcas caras, tirara o dia para renovar o guarda-roupa. E o salto talvez tivesse significado simbólico para além do estético. O salto era daquele tipo não-sandália. Hum.... acho que não fui elucidativo. Bem, não entendo de saltos, mas o que aqui descrevo prendia-se que nem um tamanco.
Volto ao que me chamou a atenção. Velhas como essa, embora se achem a última bolacha do pacote, acham-se por todo canto. Mas não é todo dia que o trânsito pára por causa de uma delas.
Tudo começou na incivilidade da senhora, que pôs o pé na rua e caminhou até a intersecção entre a faixa lateral e a central, ou, melhor dizendo, que foi para o meio da rua. Levantou sua mão de forma quase libidinosa, como se fosse colocá-la sensualmente à boca, e ficou agitando os dedos, como se aludisse a outra coisa impudica. Tudo isso para chamar um táxi que se aproximava.
O buzinaço começou. A velha parou o trânsito no meio da rua. O táxi parou todo errado para que ela entrasse no ponto em que estava, afinal, uma madame daquela se movimentar de encontro ao meio-de-transporte feriria o orgulho de um ser tão high-profile. O motorista, que economizou na hora de comprar o carro e não colocou as benditas trancas automáticas, teve que dar um quase 180 digníssimo para abrir a porta traseira do carro. E as buzinas não paravam.
Assim que a porta abriu, a ilustre senhora começou a colocar, em cínica tranquilidade, as sacolas para dentro, empurrando-as para o outro lado do banco. Chegada a hora de finalmente entrar no táxi, ainda lançou um olhar indiferente aos automóveis barulhentos que atrás se amontoavam, manobrando com dificuldades para tentar seguir caminho.
Para sentar, colocou-se de costas e sentou seu traseiro gelatinoso no banco, ainda com os pés para fora do automóvel. Depois, deu uma viradinha e colocou um pé no carro. Depois, a mu... não houve depois para o movimento de embarque. O taxista percebeu que havia um guarda de trânsito por perto, que, felizmente, num raro momento de distração em que conversava com um guardador, não percebeu o circo instalado naquela rua. Temeroso por uma multa, tratou de dar uma arrancada.
Na arrancada, a senhora apressou o movimento, mas, na imprecisão de uma mexida em espasmo, um dos pés de seu salto acabou caindo no chão, solitário e reluzente. Com a porta meio-aberta e com um pé enrugado à mostra, o táxi seguiu adiante apressado, deixando o salto para trás. Jogado no meio da rua, o salto ainda atrapalhava mais o trânsito, pois ninguém conseguia simplesmente passar em cima daquele ostensivo acessório. Os mais irritados até pensaram que o ato de deixar o salto no chão foi premeditado, significando um "big foda-se" da velha, que, ao invés de exibir retratação pelo transtorno que causara, quis tirar mais uma com a cara dos motoristas que há pouco atrapalhara.
O táxi não pôde andar muito, pois logo o sinal fechou. Estava distante uns cinqüenta metros do salto abandonado. Uma eternidade que a equação t=s/v não ousaria descrever e que poucos tentariam enfrentar. Mas teremos a nossa heroína.
Já dizia a filosofia de botequim que ninguém gosta de sair do salto. A porta do táxi se abriu e de lá saiu uma velha. Primeiro pôs os pés pra fora. Um deles estava descalço e era meio enrugado. O outro vinha sobre um salto. Puxou suas compras e saiu do táxi. Simulando ser o Garrincha, pois jamais teria a humildade de descalçar o salto que restara, a senhora caminhou a passos curtos e tortos rumo ao salto que deixara cair. Caminhava no meio da rua, novamente parando o trânsito e suscitando as ensurdecedoras buzinas.
Quando estava quase alcançando o polêmico calçado abandonado, a senhora tropeçou. Foi literalmente um salto rumo ao chão. Pááááá! Sentiu ela a dureza do asfalto, ficando estática. Em instinto vingativo, ninguém queria parar para ajudar a pobre malfeitora, mas todos acabaram parando.
E o trânsito novamente parou. Dessa vez, porém, as buzinas cessaram, afinal, não havendo como executar um réquiem, preferiram fazer um minuto de silêncio.
- Mas vaso ruim não quebra mesmo! - gritou um motorista para fora de seu carro, quando viu a velha voltar a se mexer, ainda no chão, logo exclamando em voz sinuosa: "mas não chame o 193, quero a ambulância do meu plano!"
GUIA DE LEITURA
Se você me perguntasse quais textos ler, eu diria para CLICAR AQUI e achar uns 20 e poucos que eu classifiquei como os melhores. Mas vão alguns de que eu particularmente gosto (e que fizeram algum sucesso):
Caritas et scientia
(as saudades da minha escola)
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A-Ventura de Novembro
(o retrato de um coração partido)
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Vigília
(os sonhos nos enganam...)
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Sairei para a boate e encontrarei o amor da minha vida
(ou "elucubrações esperançosas")
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(a afeição por desconhecidos)
A tentação de Mãe Valéria
(trago a pessoa amada em três dias)
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A nostalgia do que não tive
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2 comentários:
ahuhauha muito bom ....a frase final ta otima...
Beijos
A justiça tarda mais não falha, e justiça seja feita: prosaico texto como este, tão primoroso em sua simplicidade divertida - e, entretanto, incomum -, merece, sem dúvidas, um comentário meu.
Você não se supera: é sempre insuperável.
Forte abraço.
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