Fico imaginando o que se passa pela cabeça de alguém que mata outrém, da maneira que o for.
I.Imagino um motorista que atropela e mata um pedestre sem intenção de fazê-lo. Ele sai do carro, vê a pessoa estatelada no chão, com um
red glow circundante (para não dizer que havia sangue para tudo que é lado), sem movimentar-se, sem respirar, enfim, sem vida.
O que pensa a pessoa que não freou na hora certa,ou distraiu-se ouvindo o rádio e não notou que alguém cruzava a pista? O que ela pensa a respeito do outro cidadão que na correria do dia-a-dia viu sua vida literalmente atropelada? E se o rádio estivesse desligado e as atenções estivessem direcionadas ao volante? E se o acidentado tem filhos que o esperam e que dele dependem, esposa que o ama, pais que dele se orgulham, sonhos que o esperam... por quanto mais eles serão adiados? E se... tudo aquilo não tivesse acontecido?
E logo depois vêm os curiosos, todos naquele olhar mórbido, para ver o que aconteceu, para ter uma aula de anatomia cujo professor é a própria vida, para satisfazerem-se perversa e inconscientemente de que o morto não foi um deles, ... E logo depois vem a polícia, que burocraticamente encara o drama das pessoas e registra o caso como se fosse mais um - e não deixa de ser, para eles. E vem o Corpo de Bombeiro, ao som das sirenes ensurdecedoras, que alucinam e inserem combustível na cadeia de pensamento dos "e se..." e dos "e agora".
Pois é...
e agora, José? Você matou um cara e está aí, ao lado do infeliz, ambos sem ação, um pela própria morte, outro pela morte alheia, pensando não apenas nos trâmites legais que você vai encarar, como também naquelas cenas horríveis que, infelizmente, tornar-se-ão inesquecíveis. Por que aquilo foi acontecer justo com a sua pessoa? E, pior, você não teve a intenção!
II.Em seguida, imagino alguém que, só para aparecer, costuma andar armado pra sair na rua. Não é mau, não é perverso, tem boas intenções, mas não resiste a fazer uma pose de machão briguento. Certo dia, está no bar tomando umas cervejinhas com uns amigos e respectivas esposas, curtindo um futebol na televisão e rindo dos
causos cotidianos que contam uns aos outros. Por azar, na outra mesa há um engraçadinho um tanto piadista que não para de fazer gracinhas à esposa do indivíduo machão e, certa hora, esse se irrita e começa uma clássica briga de bar, que em situações comuns terminaria numa pequena pancadaria, quebra de cadeiras e ânimos exaltados, se não fosse pela arma que o cara portava. Esqueci de dizer que ele era esquentadinho. Aliás, sangue quente e poder são componentes de uma mistura letal. Nunca dão certo. Xingamento vai, xingamento vem. A arma é sacada e, em poucos segundos, todos em volta se espantam, arregalam os olhos e assistem ao espetáculo de quando o dedo indicador faz o trágico movimento para trás e sela ali o destino de um abusadinho. Apenas um abusadinho.
A ficha logo cai para o "machão" que, ali, vê cair sua macheza quando o seu "e agora?" remete ao xadrez para o qual logo será enviado e onde terá de realizar algumas
brincadeiras com seus companheiros de cela. Esse cidadão acaba de tirar a vida de outrém, por um motivo fútil. Não soube ouvir quieto, não soube ignorar, não soube dar a outra face. Danou-se por não levar desaforo para casa, danou-se por querer posar de "eu tenho a força", danou-se porque achou que valia a pena lutar pelo que chamam de honra e dizem ser importante, danou-se!
E, da mesma forma como aconteceu com o pobre do motorista, todos fazem uma roda em volta do agonizante abusadinho, e presenciam esse a titubear suas últimas palavras, não compreendendo, porém, se essas são xingamentos (jamais chegarão ao destino), lamúrias (jamais sensibilizarão quem as ouve) ou últimos pedidos de vida (jamais serão atendidos). Há o último suspiro. Novamente pergunto...
e agora, José? Não tarda, a polícia vem, junto com sua sirene insuportável. Lá está você, olhando também para o morto, com um arrependimento que nem cabe na sua razão, com um desejo inexplicável de poder voltar ao tempo e remendar uma parte do recente passado infeliz, que sufoca seu presente e condena seu futuro. Você é algemado e tiram, assim, a sua liberdade, já que você tirou a vida de outrém e portanto oferece risco à sociedade. Mas você? Um cara cheio de boas intenções que só curtia posar de machão? Pois é, meu amigo. Você. A sorte o escolheu. Sua mulher o olha com nojo e se afasta. Seus amigos também afastam-se, com medo de não serem tomados como cúmplices no crime. Sozinho no mundo, a viatura o espera, com destino ao inferno. Sua vida ali acaba. Naquele dia, você matou alguém e cometeu suicídio com apenas uma bala.
III.Logo depois imagino um matador de aluguel. Ele procura seu alvo, localiza, mira, puxa o gatilho, confere se a vítima já bateu as botas e, em seguida, vai embora friamente, como alguém que bate o ponto depois do expediente e segue para a casa.
E depois daí não consigo mais imaginar nada. Isso para mim não faz sentido algum. Não consigo abstrair a esse ponto. Perdoem-me, caros leitores.
(Ouvindo: Silêncio.)